quarta-feira, 29 de janeiro de 2025

Marina Colasanti

 EM SEU JUSTO LUGAR

Durante cinco anos
apesar dos meus cuidados
não deram nenhuma flor
as orquídeas trazidas do monte.

Agora
devolvidas a seu lugar de origem
o caseiro me faz saber
que em todos os ramos puseram brotos
e embora passado o tempo da floração
desabrocharam.

É a primavera, diz meu marido.
E eu penso sem dizer,
é a força de pertencer.
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Marina Colasanti
Mais longa vida


Um infinito inteiro
para Marina
que tanto nos ofertou
e encantou com suas palavras
e sua alegria de viver.

quarta-feira, 22 de janeiro de 2025

José Agostinho Baptista

 SAUDADE

Há,
em todas as canções do vento,
um refrão que diz que nunca mais encontrarei
a grande porta do teu amor.
Quando aí batia,
com três pancadas secas que já não se ouviam
um pouco além,
eram outros os anos,
outros os cristais de comovida arte,
contemplados por Deus.

Há,
em todas as canções do vento,
um grito,
um lamento de anjos que partiram para sempre,
deixando amargas liras e a saudade de te ver
ainda,
num século de doces tardes.
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José Agostinho Baptista
Agora e na hora da nossa morte

quarta-feira, 15 de janeiro de 2025

Primo Levi

É ISTO UM HOMEM?

Vocês que vivem seguros
em suas cálidas casas,
vocês que, voltando à noite,
encontram comida quente e rostos amigos,
    pensem bem se isto é um homem
    que trabalha no meio do barro,
    que não conhece paz,
    que luta por um pedaço de pão,
    que morre por um sim ou por um não.
    Pensem bem se isto é uma mulher,
    sem cabelos e sem nome,
    sem mais força para lembrar,
    vazios os olhos, frio o ventre,
    como um sapo no inverno.
Pensem que isto aconteceu:
eu lhes mando estas palavras.
Gravem-na em seus corações,
estando em casa, andando na rua,
ao deitar, ao levantar;
repitam-nas a seus filhos.
    Ou, senão, desmorone-se a sua casa,
    a doença os torne inválidos,
    os seus filhos virem o rosto para não vê-los.
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Primo Levi
Mil sóis

quarta-feira, 8 de janeiro de 2025

Sílvia Rubião

 SOLIDÃO

A solidão tem asas de ferro
paira em círculos
sobre a ruína das coisas
espessa, escura tece
um fio esgarçado entre dois vazios
estende-se sobre o caminho
até o lugar onde tudo começou

Sem juras de amor e morte
nutre-se de ecos abafados
o voo descreve a rota abandonada
um rastro viciado
em ressonância e simetria
a cada volta um alento
reacendendo o lume
do que não mais existe
e nunca chega onde deveria terminar

A solidão é fértil
semente coagulada
florada sem cor
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Sílvia Rubião
Tangências

quarta-feira, 1 de janeiro de 2025

Ferreira Gullar

 ANO NOVO

Meia-noite. Fim
de um ano, início
de outro. Olho o céu:
nenhum indício.

Olho o céu:
o abismo vence o
olhar. O mesmo
espantoso silêncio

da Via-Láctea feito
um ectoplasma
sobre a minha cabeça:
nada ali indica
que um ano novo começa.

E não começa
nem no céu nem no chão
do planeta:
começa no coração.

Começa como a esperança
de vida melhor
que entre os astros
não se escuta
nem se vê
nem pode haver:
que isso é coisa de homem
esse bicho
             estelar
            que sonha
            (e luta).
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Ferreira Gullar
Do livro "Barulhos" in Toda poesia


Para Marina, 
que não desiste da poesia.