quarta-feira, 26 de julho de 2023

Clarissa Macedo

INAPROPRIADA

Fui uma mulher pela metade.
Nua e exposta inteira na cama
fui apenas o buraco do teu desejo
quando salgavas o nome de outras
nos movimentos do relógio.

Cada vez em que deitava contigo
uma infecção me tomava da boca ao princípio
e eu enfraquecia em vigor e palavra
na presença de uma enorme contrição.

Hoje, que já não sirvo sequer
pros teus arroubos de homem com fome,
sou um móvel de pé quebrado
no quarto das inconstâncias.
E quanto mais distante fico
mais a tua felicidade de classe abastada
se agiganta
perante a minha fraqueza de mulher que ama.
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Clarissa Macedo
A casa mais alta do teu coração

quarta-feira, 19 de julho de 2023

Assionara Souza

Um humano em silêncio é quase uma obra de arte
E se apenas olha a água correr
Como se estivesse pensando enquanto lava as mãos
É quase uma obra de arte
Desde que não se saiba o que fez antes
Desde que não se saiba o que intenta fazer depois
Um humano adulto é sempre um quase
Sustentando-se entre o antes e o depois
E a ponto de pronunciar uma palavra
No momento em que quebra o silêncio 
O ar todo em volta estremece 
Pronto, temos somente um humano
Prestes a desmoronar-se 
De alegria, tristeza ou indiferença
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Assionara Souza
instruções para morder a palavra pássaro

quarta-feira, 12 de julho de 2023

Mia Couto

MEUS JULHOS

1. Sou julho,
estou explicado só pelo sol

Meu erro
é procurar um território
apto a nascer

A única geografia
que me aceita é a poesia

Como a chuva
que repousa entre nuvem e terra
me escrevo
na ausência de todas as línguas

2. Me esqueço-me:
só me falto eu
pra ficar todo só

3. Antes de nascer
já eu tinha envelhecido tudo

Por isso,
não me espanta
o casal de pedras
nem a árvore que me engravidou

Minha doença
felizmente,
é muito miracurável.
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Mia Couto
Raiz de Orvalho e Outros Poemas

quarta-feira, 5 de julho de 2023

Micaela Tavares

Tenho reparado nos ipês pela cidade

o meu corpo
restringe
que tua alma
me queira

pouco me importa
o corpo dos
outros pouco me
interessam fico
de ver se vens
quando vens
vou
abaixo a cabeça
enrubesço
mas volto o olhar
ao teu – de vez em sempre

procuro pelo melô
que dançamos na
mesma intensidade
em que reparo os
ipês floridos
pela cidade: como se
fosse a última coisa a se
fazer antes de
morrer.
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Micaela Tavares
Tenho reparado nos ipês pela cidade