quarta-feira, 27 de dezembro de 2023

Carlos Nejar

XIV

É preciso partir da manhã
para o escuro de Deus.
Das coisas
para as coisas.

Pisar na dor
para o equilíbrio
da terra e os frutos.

É preciso amar sempre
e de novo.
Que os pensamentos voam raso,
embaixo das estrelas.
Não há religião ou ambição
nas profundezas.
Quem ama
corre o risco.
________

Carlos Nejar
melhores poemas

quarta-feira, 20 de dezembro de 2023

Natalia Litvinova

Se agacham
e se levantam
cada uma em seu ritmo,
como teclas 
de um instrumento
que alguém pressiona
com os dedos.

Filas de mulheres
de saias
e galochas
desenterram
tubérculos.

É a dança 
para não morrer 
de fome,
dizem e sorriem.

As raízes se queixam
quando você as separa
da terra.
__________
Natalia Litvinova
Cesto de tranças




quarta-feira, 13 de dezembro de 2023

Anna Akhmátova

A MULHER DE LOT 

“A mulher de Lot, que o seguia, 
olhou  para trás e transformou-se 
numa estátua de sal “
                           (Gênesis)


E o homem justo seguiu o enviado de Deus,
alto e brilhante, pelas negras montanhas.
Mas a angústia falava bem alto à sua mulher:
"Ainda não é tarde demais; ainda dá tempo de olhar

as rubras torres da tua Sodoma natal,
a praça onde cantavas, o pátio onde fiavas,
as janelas vazias da casa elevada
onde destes filhos ao homem amado".

Ela olhou e - paralisada pela dor mortal -,
seus olhos nada mais puderam ver.

E converteu-se o corpo em transparente sal
e os ágeis pés no chão se enraizaram.

Quem há de chorar por essa mulher?
Não é insignificante demais para que a lamentem?

E, no entanto, meu coração nunca esquecerá
quem deu a própria vida por um único olhar.
_______
Anna Akhmátova
Antologia Poética

quarta-feira, 6 de dezembro de 2023

Manuel António Pina

 (XII)
[O caminho de casa]

"As palavras fazem
sentido (o tempo que levei até descobrir isto!),
um sentido justo,
feito de mais palavras.
(A impossibilidade de falar
e de ficar calado
não pode parar de falar,
escrevi eu ou outro).

Volto a casa,
ao princípio,
provavelmente um pouco mais velho.
As mesmas árvores,
mais velhas,
a lembrança delas
passando sem tempo nos meus olhos,
como uma ideia feita ou como um sentimento.

Entre o que regressa
e o que partiu um dia
ficaram palavras;
talvez (quem sabe?)
algum sentido.
Agora, como um intruso, subo as
escadas e abro a porta; e entro, vivo,
para fora de alguma coisa morta.

Senta-te aqui, fala comigo,
faz sentido
e totalidade à minha volta!"
________
Manuel António Pina
O coração pronto para o roubo