quarta-feira, 26 de outubro de 2022

Lya Luft

 MATURIDADE

Caminho entre as minhas perdas
que são insetos escuros
e os meus ganhos: douradas borboletas.

A luz de uma paixão, o dedo da morte,
o grave pincel da solidão
desenharam meus contornos, firmaram
meu chão.

Que liberdade não precisar pensar;
que alívio não ter de administrar
minha vida:
apenas andar e olhar,
apenas ouvir essas vozes
que vêm de longe, passam por mim
e não me dão importância.

Porque no vasto oceano
a minha eventual desarmonia
é só uma gota
desafinada.
Mais nada. 
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Lya Luft 
Para não dizer adeus


quarta-feira, 19 de outubro de 2022

Adélia Prado

QUALQUER COISA QUE BRILHE

São eternos esta oficina mecânica,
estes carros, a luz branca do sol.
Neste momento, especialmente neste,
a morte não ameaça, tudo é parado e vive,
num mundo bom onde se come errado,
delícia de marmitas de carboidrato e torresmos.
Como gosto disso, meu deus!
Que lugar perfeito!
Ainda que volta e meia alguém morra, tudo é muito eterno,
só choramos por sermos condizentes.
Necessito pouco de tudo,
já é plena a vida, tanto mais que descubro:
Deus espera de mim o pior de mim,
num cálice de ouro o chorume do lixo
que sempre trouxe às costas
desde que abri meus olhos,
bebi meu primeiro leite
no peito envergonhado de minha mãe.
Ofereço cantando, estou nua,
os braços erguidos de contentamento.
Sou deste lugar,
com tesoura cega cortei aqui o meu cabelo,
sedenta de ouro esburaquei o chão
atrás do que brilhasse.
Pois o encontro agora escuro e fosco
no dia radioso é único e não cintila.
Veio de vós. A vida. Do opaco. Do profundo de Vós.
Abba! Abba! Aceita o que me enoja,
gosma que me ocultou Teu rosto.
Vivo do que não é meu.
Toma pois minha vida
e não me prives mais
desta nova inocência que me infundes. 
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Adélia Prado 
Miserere

quarta-feira, 12 de outubro de 2022

Daniel Faria

AS MULHERES ASPIRAM A CASA PARA DENTRO DOS PULMÕES 

As mulheres aspiram a casa para dentro dos pulmões
E muitas transformam-se em árvores cheias de ninhos - digo,
As mulheres - ainda que as casas apresentem os telhados inclinados
Ao peso dos pássaros que se abrigam.

É à janela dos filhos que as mulheres respiram
Sentadas nos degraus olhando para eles e muitas
Transformam-se em escadas

Muitas mulheres transformam-se em paisagens
Em árvores cheias de crianças trepando que se penduram
Nos ramos - no pescoço das mães - ainda que as árvores irradiem
Cheias de rebentos

As mulheres aspiram para dentro
E geram continuamente. Transformam-se em pomares.
Elas arrumam a casa
Elas põem a mesa
Ao redor do coração.
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Daniel Faria
Poesia

quarta-feira, 5 de outubro de 2022

Filipa Leal

A CASA

Disse-te: uma casa.
Não falávamos há meses e isto
foi tudo o que eu soube dizer:
uma casa, tenho uma casa.

Arrumei primeiro os discos, depois os filmes,
só então os livros, as loiças.
Como quem se abrigasse da chuva,
pendurei os primeiros quadros.
Quatro: estrada, mar, mulher, coração.

Começou a chover quando me perguntaste
se te convidava para jantar.
Era desnecessariamente Julho
e dentro de casa chovia tanto.

Disse-to, confesso, sem esperança
- apenas porque uma casa
é muito grande para guardar na boca.

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Filipa Leal
Vem à quinta-feira