quarta-feira, 29 de novembro de 2023

Ferreira Gullar

 A alegria

O sofrimento não tem 
nenhum valor 
Não acende um halo 
em volta de tua cabeça, não 
ilumina trecho algum 
de tua carne escura 
(nem mesmo o que iluminaria 
a lembrança ou a ilusão 
de uma alegria). 

Sofres tu, sofre 
um cachorro ferido, um inseto 
que o inseticida envenena. 
Será maior a tua dor 
que a daquele gato que viste 
a espinha quebrada a pau 
arrastando-se a berrar pela sarjeta 
sem ao menos poder morrer? 

A justiça é moral, a injustiça 
não. A dor 
te iguala a ratos e baratas 
que também de dentro dos esgotos 

espiam o sol 
e no seu corpo nojento 
de entre fezes 
querem estar contentes. 
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Ferreira Gullar
Toda poesia

quarta-feira, 22 de novembro de 2023

Noémia de Sousa

 Canção fraterna

Irmão negro de voz quente
o olhar magoado,
diz‑me:
Que séculos de escravidão
geraram tua voz dolente?
Quem pôs o mistério e a dor
em cada palavra tua?
E a humilde resignação
na tua triste canção?

Foi ávida? o desespero? o medo?
Diz‑me aqui, em segredo,
irmão negro.

Porque a tua canção é sofrimento
e a tua voz sentimento
e magia.
Há nela a nostalgia
da liberdade perdida,
a morte das emoções proibidas,
e a saudade de tudo que foi teu
e já não é.

Diz‑me, irmão negro,
Quem fez a vida assim...
Foi a vida? o desespero? o medo?

Mas mesmo encadeado, irmão,
que estranho feitiço o teu!
A tua voz dolente chorou
de dor e saudade,
gritou de escravidão e veio murmurar à minha em alma ferida
que a tua triste canção dorida
não é só tua, irmão de voz de veludo
e olhos de luar.
Veio, de manso murmurar

que a tua canção é minha
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Noémia de Sousa
Sangue negro

quarta-feira, 15 de novembro de 2023

Flora Figueiredo

 Amanhecência

Quero ficar só, 
para respirar a estrela. 
Deixar a noite escorrer a mágoa, 
dissolvê-la em enxurrada. 
Não deixar nada a comprimir o peito. 
Quero a madrugada de tal jeito, 
que a alma possa flanar sem pouso certo 
e sugar o primeiro brilho esperto 
de uma gota. 
Beijar a pétala rota 
pelo mau jeito de um espinho, 
degludir devagarinho 
o mel do espasmo nascente. 
Quero o orgasmo 
do pólen, da semente; 
eu quero o sumo. 
Para recompor a vida, 
pra renascer o afeto, 
pra retomar o rumo. 
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Flora Figueiredo
Florescência

quarta-feira, 8 de novembro de 2023

Elisa Lucinda

 Amanhecimento

De tanta noite que dormi contigo
no sono acordado dos amores
de tudo que desembocamos em amanhecimento
a aurora acabou por virar processo.
Mesmo agora
quando nossos poentes se acumulam
quando nossos destinos se torturam
no acaso ocaso das escolhas
as ternas folhas roçam
a dura parede.
nossa sede se esconde
atrás do tronco da árvore
e geme muda de modo a
só nós ouvirmos.
Vai assim seguindo o desfile das tentativas de nãos
o pio de todas as asneiras
todas as besteiras se acumulam em vão ao pé da montanha
para um dia partirem em revoada.
Ainda que nos anoiteça
tem manhã nessa invernada
Violões, canções, invenções de alvorada...
Ninguém repara,
nossa noite está acostumada.
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Elisa Lucinda
Vozes guardadas

quarta-feira, 1 de novembro de 2023

Carlos Drummond de Andrade

INFÂNCIA

Meu pai montava a cavalo, ia para o campo.
Minha mãe ficava sentada cosendo.
Meu irmão pequeno dormia.
Eu sozinho menino entre mangueiras
lia a história de Robinson Crusoé,
comprida história que não acaba mais.

No meio-dia branco de luz uma voz que aprendeu
a ninar nos longes da senzala — e nunca se esqueceu
chamava para o café.
Café preto que nem a preta velha
café gostoso
café bom.

Minha mãe ficava sentada cosendo
olhando para mim:
— Psiu… Não acorde o menino.
Para o berço onde pousou um mosquito.
E dava um suspiro… que fundo!

Lá longe meu pai campeava
no mato sem fim da fazenda.

E eu não sabia que minha história
era mais bonita que a de Robinson Crusoé.
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Carlos Drummond de Andrade
Alguma Poesia