quarta-feira, 31 de janeiro de 2024

Erlândia Ribeiro

TRISTES TRÓPICOS

eu que me lanço em atos
quase sempre impossíveis
levanto uma bandeira
vermelho-sangue
e recordo:
estou no ano vermelho
com o coração em pedra bruta.
entendo agora:
tudo que move para frente
alcança
mesmo que a luta dure
toda a vida.
racho o mármore
desviando
transgredindo.

força-corpo-coragem.

a palavra salva
a escrita também.
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Erlândia Ribeiro
vermelho/ruína

quarta-feira, 24 de janeiro de 2024

José Luís Peixoto

como não tenho lugar no silêncio onde morrem as gaivotas,
despeço-me no oceano e deixo que o céu me conheça.
talvez a serenidade possa ser as minhas mãos a serem uma
brisa sobre a terra e sobre a pele nua de uma mulher.
esse dia, esperança de amanhã, poderá chegar e estarei dormindo.
hoje, sou um pouco de alguma coisa, sou água salgada
que permanece nas ondas que tudo rejeitam e expulsam
na praia. as gaivotas sobrevoam o meu corpo vivo. os meus
cabelos submersos convidam o silêncio da manhã, raios de sol atravessam
o mar tornados água luminosa. aqui, estou vivo e sou alguém muito longe.
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José Luís Peixoto
A criança em ruínas

quarta-feira, 17 de janeiro de 2024

Jorge Miranda

 ESTA RUA

Penso no contrito constrangimento
de se estar vivo
toda vez que tento atravessar
esta rua: é tão pungente,
como uma forma que só os olhos
de dentro conseguem ver
substancialmente. O restante
é o de sempre: o mesmo cenário
que dá bom dia ao vazio
preenchível das retinas, como
quem nada quer a não ser
passar sem ser percebido.

Este sou eu, completamente invisível.
Resta a vida, excessivamente vida,
e alguma tentativa de travessia.
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Jorge Miranda
Ontem

quarta-feira, 10 de janeiro de 2024

Daniela Athuil

 SALVAR O SONHO

I

Estou dormindo
Mas deixei por escrito
Instruções na cabeceira
Para salvar o sonho:

Antes de me acordar
Lembre-se,
É tarefa delicada
Editar fantasias
Curar medos e feridas
Abrir a casa
Das verdades não ditas

Antes de abrir as janelas
E inundar a retina
Saiba que toda
Poesia (onírica)
Foi feita para ser lida
No escuro
Com a luz emprestada
De um vagalume

Antes de me chamar
Peço que confira:
Meu nome
Telefone
As horas
O dia
Nem sempre é possível
Acordar a mesma
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Daniela Athuil
Acontece no corpo

quarta-feira, 3 de janeiro de 2024

Lya Luft

 CANÇÃO DO RENASCIMENTO

Quando me mataram,
meu lado não verteu água nem sangue:
eu me verti de mim por esta fenda,
escorri para a terra, debaixo do gelo,
ausente.

(Alguém sabia que eu estava ali,
e isso era uma voz na noite.)

E se houver um tempo de retorno,
eu volto.
Subirei empurrando a alma com meu sangue,
por labirinto e paradoxos,
até inundar novamente o coração.

(Terei, quem sabe, o mesmo ardor de antigamente.)
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Lya Luft 
Secreta Mirada e outros poemas