quarta-feira, 30 de agosto de 2023

Golgona Anghel

Devia escrever coisas mais divertidas,
entreter as massas.
Evitar, ao menos, cenas tristes,
mudar de roupa uma vez por mês.
Podia, decerto, afastar-me, sair do corpo,
dos seus humores.
Entrar na biopolítica, usar os seus métodos.
Engravidar uma ideia alegre.
Enfim, nada contra os suicidas de carreira
e os demais performers do além.
Não é que não me apeteça largar-te
num eléctrico sem travões.
Deixar-te num país estrangeiro,
sem dinheiro e sem memória.
Não se iludam, ainda sei baixar as calças.
Fazer o truque.
Mas se o meu psiquiatra ler isto,
vai achar que o tratamento
já não funciona.
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Golgona Anghel
Nadar na Piscina dos Pequenos

quarta-feira, 23 de agosto de 2023

Paula Vaz

A Onça

Viver
é também sobreviver.

E o alimento,
variável.

O que há de mais selvagem
no disparo do cavalo,
na voracidade da onça,
nas unhas do corvo
e no voo do pássaro sobre o abismo?

É que agora,
o animal quer falar

Ela ruge.
Ele rosna,
e só querem falar.

Quando amam,
parece que querem falar
mais ainda.

E morre-se
tantas vezes.

Se se ofendem,
eles precisam falar.

Ela esturra,
ele uiva,
eles se arranham
até cravar os dentes
no casco das palavras.

Bêbados de sol,
ávidos de lua,
caçam com o ouvido
a carne.

Não é o difícil o último rebelde?

Esses animais melânicos
já sofreram mutações.
Por isso surgem na luz
como vestígios da noite.

E esse poder muscular
de rasgar o vento quando encontram a presa
divide ao meio uma floresta.
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Paula Vaz 
O Reino animal da poesia

quarta-feira, 16 de agosto de 2023

Marina Colasanti

TANTO POR FAZER

Infindáveis são as tarefas
no cotidiano dessa vida nem tanto.
Os dentes se gastam de moer o pão,
o pão exige ser assado
o forno, aceso
e há que soprar as brasas
soprar as brasas
soprar as brasas
embora o arder dos olhos.
A tarefa conclusa conduz
a outra tarefa
as torneiras se abrem
e se fecham
como o punho ao redor
do cabo de vassoura
ou faca.
E o tempo já se esgota
com tanto por fazer
quando noite se achega.
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Marina Colasanti 
Mais longa vida


quarta-feira, 9 de agosto de 2023

Manuel Lopes

 HISTÓRIA DO QUARTO

só,
o silêncio é uma ordem,
a palavra uma lembrança,
apenas um sinal.

longa é a desordem
e as paredes identificam, sem adjetivos,
a indolência de tudo.
a gravata e o jornal são presenças ilustres
na festa muda do baralho das coisas.

assisto, grave,
ao mágico transporte da natureza morta
criando a poesia.

transparente,
a clarabóia filtra a paisagem "bleu"
e as nuvens
- sombras alongadas de fios à distância - 
passeiam no meu quarto
monotonamente.

a mesa sem retratos da amada.
as rosas estão ausentes
e os perfumes concentrados
nas tuas cartas.
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Manuel Lopes
O verbo contido - poesia até aqui

quarta-feira, 2 de agosto de 2023

Olga Savary

DENTRO DOS OLHOS FECHADOS

Eu disse da espera sem palavras.
Que precisado é senão memória
se num silêncio assim virá a fonte
esperada e o desejo será tão alto
como o outro caminho do jardim
que se procura?
Acontecerá quando o vento unir
nossos ombros e tudo que não foi
será agora.
Manhãs abrirão e murcharão como
pássaros de ontem dentro dos olhos
fechados.

E o tempo dormirá em nossas mãos.
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Olga Savary
Coração subterrâneo