quarta-feira, 30 de novembro de 2022

Mariana Ianelli

FLOR DO OFÍCIO

Emboscada no silêncio
Eu preparo a rosa inútil
Com as horas que salvei
Do desperdício.

Feito um verme
Decompondo ceticismo
Em força indômita,
Preparo e deito essa flor
No teu caminho
Para quando o teu corpo
(Tão quebrantável quanto o meu)
For sozinho pastorear
Seus demônios no vazio.

Quase dois mil anos
Guardado no deserto
Um salmo esperou
Para recobrar sua melodia –
E eu não te esperaria?
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Mariana Ianelli
Treva Alvorada

quarta-feira, 23 de novembro de 2022

Wisława Szymborska

DESATENÇÃO

Ontem me comportei mal no universo.
Vivi o dia inteiro sem indagar nada,
sem estranhar nada.

Executei as tarefas diárias
como se isso fosse tudo o que devia fazer.

Inspirar, expirar, um passo, outro passo, obrigações,
mas sem um pensamento que fosse
além de sair de casa e voltar para casa.

O mundo podia ter sido percebido como um mundo louco,
e eu o tomei somente para uso habitual.

Nenhum — como — e por quê —
e como foi que aqui apareceu —
e de que lhe servem tantas minúcias buliçosas.

Fiquei como um prego mal pregado na parede
ou
(aqui uma comparação que me faltou).

Uma depois da outra ocorreram mudanças
mesmo no estrito espaço de um pestanejar.

Sobre uma mesa mais nova, por mão um dia mais nova,
o pão de ontem foi cortado de um modo diferente.

Nuvens como nunca, uma chuva como nunca,
pois caíram gotas diferentes.

A Terra girou em torno de seu eixo,
mas num espaço já abandonado para sempre.

Isso durou umas boas 24 horas.
1440 minutos de chances.
86 400 segundos para intuições.

O savoir-vivre cósmico,
embora se cale sobre nós,
ainda assim nos exige algo:
alguma atenção, umas frases de Pascal
e uma participação perplexa nesse jogo
de regras desconhecidas.
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Wisława Szymborska
Um amor feliz

quarta-feira, 16 de novembro de 2022

Cida Pedrosa

EMPATIA

o bem-te-vi que canta na minha janela
sabe do concreto
muros
armadilhas
e arames

o bem-te-vi que canta na minha janela
tem a absoluta certeza
do espaço nada
dessa cidade que me afoga
em margens de incertezas

o bem-te-vi que canta
na minúscula janela do banheiro
sabe que eu
sentada neste espaço 1x2
tenho uma ausência de ninho
tão grande quanto a dele
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Cida Pedrosa
Gris

quarta-feira, 9 de novembro de 2022

Orides Fontela

FALA

Tudo
será difícil de dizer:
a palavra real
nunca é suave.

Tudo será duro:
luz impiedosa
excessiva vivência
consciência demais do ser.

Tudo será
capaz de ferir. Será.
agressivamente real.
Tão real que nos despedaça.

Não há piedade nos signos
e nem no amor: o ser
é excessivamente lúcido
e a palavra é densa e nos fere.

(Toda palavra é crueldade)

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Orides Fontela



quarta-feira, 2 de novembro de 2022

Lívia Natália

INSURREIÇÃO
 
Seria mais fácil não amar os pessegueiros macios
e nada sorver do seu perfume,
mas os meus dentes querem a carne do seu corpo,
minha língua deseja lamber do seu sumo.

O certo seria plantar a semente e esperar,
dos laços e nós dos caules finos,
aspergir-se o perfume da fruta vindoura.
mas meu corpo tem pressa
e não respeita os relógios que inventam o tempo.

Minha natureza é temporã.
Eu sou das fêmeas que vão!
Ficar é para quem tem raízes,
ceder é para quem deseja morada: eu sou o desabrigo.
quero a fruta furtada do pé.
comer seu gosto ainda verde,
morder suas entranhas ainda duras.

Não sou das que esperam,
Sou das que não querem nem chegar,
Sou de partir e, no precipício, ainda ser silenciosa,
inteira.
Sou uma destas mulheres que vão.
ficar é raiz.
partir é imensidão.
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Lívia Natália
Dia bonito pra chover