quarta-feira, 31 de maio de 2023

Maria Lúcia Dal Farra

ÁGUAS MOVENTES

Quem
melhor que a mulher
para afiançar
a inconstância da mudança?
A água é o seu elemento,
matéria onde se afunda
e se molda - irremissivelmente.

Por causa dela
há escafandristras
enigmas de baixo
algas
sondas
e
(mais que todos)
o polvo.
Será ela capturável?

Se braços podem contê-la
liquefeita escapole pelas bordas.
Nela
toda a tensão se adelgaça - 
quem se entrega?

Águas moventes,
a mulher é o ventre
onde a morte

à vida permanece presa.
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Maria Lúcia Dal Farra
Alumbramentos

quarta-feira, 24 de maio de 2023

Samarone Lima

 ELOGIO DA MANHÃ

Debruça-te na manhã
Ela nunca é prematura
Não cobra por entregar-se inteira
como serva que se regozija por existir

Deixa que ela avance em tuas plantas, paredes,
em teus dedos
que alcance teus filhos, amores, filiações
como os animais que buscam calor gratuito por instinto

Tuas roupas sorriem, estendidas
enamoradas dessa atmosfera
e logo voltarão a ti
para celebrar teus encontros, viagens, perdas
teu cansaço

Deixa que a manhã te diga, em silêncio
as palavras que se esconderam de ti
nesta noite que nunca mais voltará

Lembra que, ao abrir os olhos
estarás levando teu sangue a um mundo que não cansa
e segue, em seu perpétuo movimento
até que venha o amanhã

Abre teus braços e recebe este Deus que nunca se perde

Segue
Vai como o sol, em sua exuberância calada
Ilumina em silêncio tua escuridão
teus calabouços, quimeras
E depois,
nada diz

Vestida de sol,
num varal enroscado na alma
haverás de moldar novas formas delicadas
de prenúncios e aleluias
e tudo será eterno
e teu
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Samarone Lima
O céu nas mãos

quarta-feira, 17 de maio de 2023

Conceição Evaristo

Só de sol a minha casa

A Adélia Prado, com licença, que também sou mineira

Durante muito tempo,
também tive um sol
a inundar a nossa casa inteira,
tal a pequenez do cômodo.

Pelas fendas do machucado zinco,
folhas escaldantes de nosso teto,
invasivos raios confrontavam
pontos de mil quenturas,
onde jorrantes jatos de fogo
abrasavam o vazio
de um estorricado chão.

Em dias de maior ardência,
minha mãe alquebrava
seu milenar e profundo cansaço
no recorte disforme de um buraco 
- janela sem janela –
acontecido no centro de uma frágil parede.
(rota de fuga de uma presa a inventar 
extensão de um prado)

Eu não sei por quê, ela olhava o tempo
e nos chamava para perscrutar
em que lugar morava a esperança.
Olhávamos.
Salvou-nos a obediência.
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Conceição Evaristo
Poemas da recordação e outros movimentos



quarta-feira, 10 de maio de 2023

Bei Dao

Sem título

Dá-me a tua mão
assim protejo-te do incômodo
o mundo bloqueado pelo meu ombro
Se o amor não se esquece
                                           a dor não se lembra
Guarda as minhas palavras: 
Nada passará
nem mesmo o último álamo
- Lápide sem epitáfio
erguida no limite do caminho
As folhas que caem também sabem falar
ao rodopiar, perdem a cor, embranquecem
congelam lentamente
seguram os nossos passos
Por certo, ninguém sabe o amanhã
que nasce na madrugada seguinte
quando nos afundamos no sono
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Bei Dao
Não acredito no eco dos trovões

quarta-feira, 3 de maio de 2023

Adriane Garcia

A CORAGEM DE ESTER    

         (como se eu tivesse alternativa / ele segurou o cetro / e me fez tocá-lo)

Uma mulher se ergue para salvar o dia
Pacientemente, ela enfeita as horas

Ao que é chamada, a mulher atende
É para a mulher o clamor na urgência

É o coração dela que mais cedo palpita
É ela que rompe a casca do mundo

E o perigo a espreita em cada ousadia
(às vezes, na vida, é matar ou morrer)

E mesmo trêmulas, as pernas caminham
Como quem vai interpelar um rei

E quando à mulher se oferecer um reino
Ela dirá que prefere um povo.
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Adriane Garcia 
A bandeja de Salomé