quarta-feira, 25 de janeiro de 2023

Eugénio de Andrade

DISSONÂNCIAS

Pedra a pedra
a casa vai regressar.
Já nos ombros sinto o ardor
da sua navegação.

Vai regressar
o silêncio com as harpas.
As harpas com as abelhas.

No verão morre-se
tão devagar à sombra dos ulmeiros!

Direi então:
Um amigo
é o lugar da terra
onde as maçãs brancas são mais doces.

Ou talvez diga:
O outono amadurece nos espelhos.
Já nos meus ombros sinto
a sua respiração.
Não há regresso: tudo é labirinto.
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Eugénio de Andrade
Poesia

quarta-feira, 18 de janeiro de 2023

Inês Francisco Jacob

INTRODUÇÃO AO PARDAL

assalta-te várias vezes a ideia
de que também os pássaros nascem
a não saber caminhar
mas eles aprendem logo o passo seguinte
e voam

esquecem depressa para que serve o resto das penas

tomara sermos assim também
uma vez por outra
uma vez aqui e ali
conseguirmos cair sem tocar no chão
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Inês Francisco Jacob
Sair de cena



quarta-feira, 11 de janeiro de 2023

Lúcio Cardoso

RECEITA DE HOMEM

Depois deve ser alto,
sem lembrar o frio estilo da palmeira.
Moreno sem excesso para que se encontre
tons de sol de agosto em seus cabelos.
E nem louro demais para que, de repente
no olhar cintile algo da cigana pátria adormecida.
E que tenha mãos grandes, para demorados carinhos
e adeuses que se retardem ao peso do próprio gesto.
Pés grandes, também, por que não,
para que os regressos sejam breves
e haja resistência para as conjuntas caminhadas.
Os olhos falem, falem sempre, falem
de amor, de ciúme, de morte ou traição.
Mas que falem. Porque o homem sem a música dos olhos
é como sepultura exposta ao sol do meio-dia.
E que o riso relembre um pouco da infância,
para que se tenha, no fervor do beijo,
uma memória de pitanga e amora esmagadas
Ah, o corpo! Sucedam alvoradas ao longo do tórax gentil,
e escureça a penugem até o sexo velado.
(Mas não definitivamente.)
E o seu passo lembre a dança, mas com firmeza,
e o seu rastro fale de perfume, sem perfume
e escorram pausados rios em seus flancos hieráticos.
E que ele cante, sem cantar
por toda a sua humana contextura,
para que também em torno dele as coisas cantem,
quando, como o primeiro homem,
nu ele se erguer defronte ao mar.
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Lúcio Cardoso
Poesia Completa




quarta-feira, 4 de janeiro de 2023

Ana Luísa Amaral

WHAT’S IN A NAME
  
Pergunto: o que há num nome?

De que espessura é feito se atendido,  
que guerras o amparam,  
paralelas? 

Linhagens, chãos servis, 
raças domadas por algumas sílabas, 
alicerces da história nas leis que se forjaram 
a fogo e labareda? 

Extirpado o nome, ficará o amor, 
ficarás tu e eu – mesmo na morte, 
mesmo que em mito só 

E mesmo o mito (escuta!), 
a nossa história breve 
que alguns lerão como matéria inerte, 
ficará para o sempre do humano 

E outros  
o hão-de sempre recolher ,  
quando o seu século dele carecer 

E, meu amor, força maior de mim,  
seremos para eles como a rosa – 

Não, como o seu perfume: 

ingovernado  livre 
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Ana Luísa Amaral
Lumes