quarta-feira, 28 de dezembro de 2022

Nuno Júdice

SINFONIA PARA UMA NOITE E ALGUNS CÃES 

De noite, um cão começa a ladrar; e,
atrás dele, todos os cães da noite
se põem a ladrar. Depois, o primeiro
cão cala-se. Pouco a pouco, os outros
também se calam, até que o silêncio
se instala, como antes de o primeiro
cão ter ladrado. De noite, não
é possível saber por que é que um cão ladra,
se o não estamos a ver. Talvez porque
alguém tenha passado por trás de um
muro; talvez por causa de um gato (essas
sombras que se esgueiram pelas portas).
Não é preciso encontrar razões concretas
para justificar a noite de todos os
cães: mas é verdade que um cão, quando
ladra, e acorda os outros cães, acorda
a própria noite, os seus fantasmas, o que
não se pode ver, isto é, o centro da
noite, o negro motor do mundo.
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Nuno Júdice 
Por dentro do fruto a chuva





quarta-feira, 21 de dezembro de 2022

Adélia Prado

LAPINHA

Quando éramos pobre e eu menina,
era assim o Natal em nossa casa:
quatro semanas antes
a palavra ADVENTO sitiava-nos,
domingo após domingo.
Comeríamos melhor naquele dia,
seríamos pouco usuais:
vinho, doces, paciência.
Porque o MENINO estremecia no feno
e nos compadecíamos de Deus até as lágrimas.
Olhando a manjedoura, o que eu sentia
- sem arrimo de palavras-
era o que sinto ainda:
"O desejo de esbeltez será concretizado."
À luz que não tolera excessos,
o musgo, a areia, a palha cintilavam,
a pedra. Eu cintilava.
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Adélia Prado
Terra de Santa Cruz



quarta-feira, 14 de dezembro de 2022

Cláudia R. Sampaio

Às vezes entristece-me esta cama cheia de espaço
Isto de não servir a ninguém
Penso: mas que medida tenho eu
que nunca sou roupa para os outros

Diria que não é culpa minha
Sei que faço a vida como as outras pessoas
perdida no horizonte de um entardecer canalha
vindo para casa sorrindo aos vizinhos
com um saco de fruta na mão

Penso: todos vêem que fui às compras,
que tenho o ar leve de quem parou no café
espalhando perfume
dizendo o que está certo sobre este dia
sendo a mulher exacta do que é ser mulher
servindo o balcão a todo o comprimento
(e tudo pode mudar depois de uma bica)

Como é bom saber que por aqui todos estão vivos
ignorando a minha dificuldade em escolher maçãs

Entrego-me ao destino,
há muito que não conto contigo
E olho a fruta que não como,
pernas nuas e mão no sexo

A culpa é tua se dizes sempre o mesmo nome
se tens sempre a mesma idade
e a mesma casa
se quando revelas a tua identidade
é impossível que o céu te expluda
e que te acudas de incertezas
e de novos buracos.
A culpa é tua se ainda não morreste,
se nunca te atrincheiraste à espera
de uma bomba que te mude os olhos
se nasces sempre no mesmo dia. 

Não te aflijas.
Estás sempre tempo de não
dormir na mesma posição
com a mão aberta em esmola

Também me custa sobreviver a estes dias
mas o que ainda não chegou
é infinito. 
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Cláudia R. Sampaio
Inteira Como um Coice do Universo



quarta-feira, 7 de dezembro de 2022

José Saramago

ALEGRIA

Já ouço gritos ao longe 
Já diz a voz do amor 
A alegria do corpo 
O esquecimento da dor 

Já os ventos recolheram 
Já o verão se nos oferece 
Quantos frutos quantas fontes 
Mais o sol que nos aquece 

Já colho jasmins e nardos 
Já tenho colares de rosas 
E danço no meio da estrada 
As danças prodigiosas 

Já os sorrisos se dão 
Já se dão as voltas todas 
Ó certeza das certezas 
Ó alegria das bodas 
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José Saramago
Provavelmente alegria