quarta-feira, 22 de fevereiro de 2023

Manoel de Barros

O MENINO QUE GANHOU UM RIO

Minha mãe me deu um rio.
Era dia de meu aniversário e ela não sabia o que me presentear.
Fazia tempo que os mascates não passavam naquele lugar esquecido.
Se o mascate passasse a minha mãe compraria rapadura
Ou bolachinhas para me dar.
Mas como não passara o mascate, minha mãe me deu um rio.
Era o mesmo rio que passava atrás de casa.
Eu estimei o presente mais do que fosse uma rapadura do mascate.
Meu irmão ficou magoado porque ele gostava do rio igual aos outros.
A mãe prometeu que no aniversário do meu irmão
Ela iria dar uma árvore para ele.
Uma que fosse coberta de pássaros.
Eu bem ouvi a promessa que a mãe fizera ao meu irmão
E achei legal.
Os pássaros ficavam durante o dia nas margens do meu rio
E de noite eles iriam dormir na árvore do meu irmão.
Meu irmão me provocava assim: a minha árvore deu flores lindas em setembro.
E o seu rio não dá flores!
Eu respondia que a árvore dele não dava piraputanga.
Era verdade, mas o que nos unia demais eram os banhos nus no rio entre pássaros.
Nesse ponto nossa vida era um afago!
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Manoel de Barros
Memórias Inventadas - as infâncias de Manoel de Barros



quarta-feira, 15 de fevereiro de 2023

Aline Aimée

UMA RESERVA DE SUTILEZAS


tenho meus carinhos, meus cuidados

levo sempre comigo uma dose reserva de sutilezas

quem mergulha em mar de flores
acaba levando um punhado de cortes,
que cicatrizam em palavras de mistério - 
seus segredos, meus segredos
sussurros sobre a pele, indícios
que hão de nos surpreender revelados

por isso, carrego sempre comigo
uma dose secreta de afagos
que hão de aplainar os ímpetos,
hão de evitar estragos,
mas nunca reterão os arrepios
que segredamos, silenciados
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Aline Aimée
uma reserva de sutilezas





quarta-feira, 8 de fevereiro de 2023

Ocean Vuong

 Limiar

No corpo, onde tudo tem seu preço,
              eu era um mendigo. Ajoelhado,

olhava, pela fechadura, não
              o homem no banho, mas a chuva

a atravessar seu corpo: cordas de guitarra a
                estalar sobre ombros em forma de globo.

Ele cantava, e é por isso
             que eu lembro. Sua voz

me preenchia até a medula
             como um esqueleto. Até mesmo meu nome

se ajoelhava dentro de mim, pedindo
                para ser poupado.

Ele cantava. É tudo que lembro.
                Pois no corpo, onde tudo tem seu preço,

eu estava vivo. Eu não sabia
                que havia motivo melhor.

Que certa manhã meu pai ia parar
                — potro negro em tempestade —

& tentar escutar minha respiração contida
                atrás da porta. Eu não sabia que o custo

de entrar numa canção — era perder
                o caminho de volta.

Por isso entrei. Por isso perdi.
                Perdi tudo com meus olhos

bem abertos.
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Ocean Vuong
Céu noturno crivado de balas



quarta-feira, 1 de fevereiro de 2023

Bárbara Mançanares

minha bisavó cobria os espelhos com lençol
amaldiçoava meu banho quente e a curiosidade em explorar janelas
com o destino de um rosto imóvel.

minha avó não pede para eu cobrir os espelhos
mas aconselha me afastar das janelas
desvirar os chinelos em amor à minha mãe
trancar as portas da casa e conferir,
uma a uma, antes de dormir.

minha mãe não possui espelhos
fala do sereno como quem oferece água
deixa os sapatos alinhados feito o deus que organiza os caminhos.
me fala com urgência sobre usar chinelos de borracha
para que os pés não enraízem
enquanto a casa cheira a capim santo queimado
e a parede não reflete a sombra do lampião.

eu evito os espelhos
brigo com o vento após o banho quente
carrego a obsessão por deixar as portas bem trancadas
e os sapatos dispostos em fileiras do lado de fora da casa
mas, quando chove, abro as janelas como quem grita
deixo que no chão se formem poças
se formem rios
bacias inteiras
deixo que os peixes naveguem
e lancem cócegas aos meus tornozelos cansados.
com os pés bem descalços
aninho em meus dedos os raios
e juntos rasgamos os mapas até atingir
o centro da terra.
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Bárbara Mançanares
Cartografias do corpo que canta