quarta-feira, 18 de setembro de 2024

José Tolentino Mendonça

 A DELICADEZA DO MUNDO

A delicadeza do mundo chega-nos 
através de frases interrompidas
de sementes que nos dispersam
de paralelas pintadas
com uma faca ou uma corda
a mudar com o vento
mesmo aqui, mesmo neste instante
as paredes do mundo não são muralhas
de altura inusitada
mas escadas suaves como fumo

Pudéssemos acordar uma manhã
e descobrir na poça castanha
entre gravetos, folhas apodrecidas
e ramos
que fazemos parte da sua solidão
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José Tolentino Mendonça
A noite abre meus olhos

quarta-feira, 11 de setembro de 2024

Caio Fernando Abreu

 17

Aceito a solidão que me impões.
Senhor, embora não a compreenda
nem a creia justa ou merecida.
Ainda assim, aceito essas manhãs sem gosto
em minha boca seca,
e também as noites sem ninguém
com seus sonhos de treva e medo.
O telefone calado, a campainha muda
ninguém pensa em mim pela cidade imensa.
Faço faxinas pela casa
e limpo meu corpo metodicamente
como se amanhã fosse outro dia
e não a continuação deste mesmo
de hoje, de ontem, e mais além.
Tenho pena de mim que habito
este país deserto
tenho pena de ter inventado tudo isso
como uma rede. E ainda assim aceito,
Senhor, saturnos, quadraturas,
sinais indecifráveis para meus olhos cansados
de tantos símbolos
Mas limpo a casa, faço a cama
compro rosas que espalho pelos cantos,
escrevo maus poemas, como este,
que me embalam distraído
das durezas que me impões a cada dia.
Submisso ou covarde, aceito, aceito.
Durmo sozinho sempre.
E amanhã, recomeço.
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Caio Fernando Abreu
09 de setembro de 1981
Poesias nunca publicadas de Caio Fernando Abreu

quarta-feira, 4 de setembro de 2024

Maria Lúcia Dal Farra

EXERCÍCIO

O poeta vai gastando a vida na caligrafia
que lhe gasta a tinta.
Caneta à antiga
daquelas que se enchem à mão - 
pena torta de tenaz inspiração
que surrupia quase sempre
(na surdina)
o alvissareiro tinteiro.

Mal traçadas linhas, aflitas
por escoarem em si mesmas os meus dias
pois que de semana se completa um caderno
- quem dirá o ano?

Escrever só para desmanchar o que ainda está plano.
Para dar função aos dedos. 
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Maria Lúcia Dal Farra
Terceto para o fim dos tempos