quarta-feira, 28 de agosto de 2024

Cora Coralina

Das pedras

Ajuntei todas as pedras
que vieram sobre mim.
Levantei uma escada muito alta
e no alto subi.
Teci um tapete floreado
e no sonho me perdi.

Uma estrada,
um leito,
uma casa,
um companheiro.
Tudo de pedra.

Entre pedras
cresceu a minha poesia.
Minha vida...
Quebrando pedras
e plantando flores

Entre pedras que me esmagavam
levantei a pedra rude
dos meus versos.
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Cora Coralina
Meu livro de cordel


quarta-feira, 21 de agosto de 2024

Edna St. Vincent Millay

 II ORAÇÃO A PERSÉFONE

Dá a ela, Perséfone,
Tudo que não pude dar;
Deixa em teu colo repousar;
Ela era tão orgulhosa e arisca,
Petulante, grosseira e malandra.
Fui para ela nada, mera gandra.
É uma criancinha torpe e bisca
Perdida no Inferno - Perséfone,
Deixa em teu colo repousar;
E diz a ela: "Querida, querida,
Que mais queres da vida?".
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Edna St. Vincent Millay 
Poemas, Solilóquios e Sonetos




quarta-feira, 14 de agosto de 2024

Maria Carpi

 54.

A esperança como a poesia
é essencialmente mediadora.
O que tomba é um veículo

dos que continuam a caminhada.
O mártir é o mediador do sangue.
Há que se sobreviver aos pais,

sem matá-los. Mesmo quando
a morte os alcança, deixá-los
viver. Sobreviver não à morte,

mas ao nascimento. Ao sermos
expulsos do ventre, entranhamos
o mundo. Sobreviver é tornar

audível a voz das entranhas.
E a esperança da vida depois
a morte é superada no desejo

da esperança de não estarmos
mortos na existência. Viver
na esperança é persistir, não

importa a duração da chama.
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Maria Carpi
A Esperança contra A Esperança

quarta-feira, 7 de agosto de 2024

Priscila Pasko

 BATISMO

    Chega de maneira discreta, falando baixo. Diz que marcou hora. Assim que a recepcionista permite seu ingresso, cruza o salão até onde estou à sua espera. Toda semana ela vem.
    Acomoda-se no lavatório deitando a cabeça em minha direção, como se batismo fosse. E eu resgatando das profundezas aqueles fios em brasa, um arrebol em minhas mãos. Distribuo os raios de sol adormecidos na cuba e começo a lavar os seus cabelos nesse acolhimento. 
    Então, com os olhos cerrados, ela chora. Após certo tempo, sempre chora. Não me ocorre perguntar se dói, se é solidão ou se é coisa não sabida. Mas eu procuro o pranto entre os seus fios, vasculho no couro cabeludo, fazendo da busca carinho. A água morna escoa enquanto ela entrega a sua cabeça como oferenda. Me demoro nesta mansidão. Enxugo e desembaraço os seus cabelos com o cuidado que se deve dedicar aos que sentem demais. 
    Aos poucos, ela volta a superfície das suas profundezas e me encara. Prevenida que sou, escapa de cair na cova aberta de seu sorriso. "Hoje é a tua vez", ela me diz, e me rendo ao ritual. Eu que tenho os cabelos lavados agora. Aqui debaixo vejo uma aurora e suas estrelas faciais. Agora sou eu que choro e não sei se é de dor, solidão ou de coisa não sabida. Mas sei que acabo de ser salva pelo despenhadeiro de seu afago.
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Priscila Pasko
Como se mata uma ilha