quarta-feira, 26 de março de 2025

Carlos Drummond de Andrade

 PROCURA

Procurar sem notícia, nos lugares
onde nunca passou;
inquirir, gente não, porém textura,
chamar à fala muros de nascença,
os que não são nem sabem, elementos
de uma composição estrangulada.

Não renunciar, entre possíveis,
feitos de cimento do impossível,
e ao sol-menino opor a antiga busca,
e de tal modo revolver a morte
que ela caia em fragmentos, devolvendo
seus intactos reféns — e aquele volte.

Venha igual a si mesmo, e ao tão-mudado,
que o interroga, insinue
a sigla de um armário cristalino,
além do qual, pascendo beatitudes,
os seres-bois, completos, se transitem,
ou mugidoramente se abençoem.

Depois, colóquios instantâneos
liguem Amor, Conhecimento,
como fora de espaço e tempo hão de ligar-se,
e breves despedidas
sem lenços e sem mãos
restaurem — para outros — na esplanada
o império do real, que não existe.
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Carlos Drummond de Andrade
A vida passada a limpo

quarta-feira, 19 de março de 2025

Alice Sant'anna

 RABO DE BALEIA

um enorme rabo de baleia
cruzaria a sala neste momento
sem barulho algum o bicho
afundaria nas tábuas corridas
e sumiria sem que percebêssemos
no sofá a falta de assunto
o que eu queria mas não te conto
era abraçar a baleia mergulhar com ela
sinto um tédio pavoroso desses dias
de água parada acumulando mosquito
apesar da agitação dos dias
da exaustão dos dias
o corpo que chega exausto em casa
com a mão esticada em busca
de um copo d’água
a urgência de seguir para uma terça
ou quarta boia, e a vontade
é de abraçar um enorme
rabo de baleia seguir com ela
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Alice Sant'anna
Rabo de Baleia

quarta-feira, 12 de março de 2025

Bruna Lombardi

 UMA MULHER

Uma mulher caminha nua pelo quarto
é lenta como a luz daquela estrela
é tão secreta uma mulher que ao vê-la
nua no quarto pouco se sabe dela

a cor da pele, dos pêlos, o cabelo
o modo de pisar, algumas marcas
a curva arredondada de suas ancas
a parte aonde a carne é mais branca

uma mulher é feita de mistérios
tudo se esconde: os sonhos, as axilas, a vagina
ela envelhece e esconde uma menina
que permanece onde ela está agora

o homem que descobre uma mulher
será sempre o primeiro a ver a aurora.
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Bruna Lombardi
O Perigo do Dragão

quarta-feira, 5 de março de 2025

Affonso Romano de Sant'anna

 DESPEDIDAS

Começo a olhar as coisas
como quem, se despedindo, se surpreende
com a singularidade 
que cada coisa tem
de ser e estar.

Um beija-flor no entardecer desta montanha
a meio metro de mim, tão íntimo,
essas flores às quatro horas da tarde, tão cúmplices,
a umidade da grama na sola dos pés, as estrelas
daqui a pouco, que intimidade tenho com as estrelas
quanto mais habito a noite!

Nada mais é gratuito, tudo é ritual.
Começo a amar as coisas
com o desprendimento que só têm
os que amando tudo o que perderam 
já não mentem. 

***

MORRER DE AMOR

Não posso dizer ao meu amor
que comigo escolheu viver:
- pare de morrer.
Nem um nem outro pode
parar de envelhecer .

Advirto aos incautos:
- não há nada de mórbido neste assunto.
Estamos apenas
morrendo de amor
                            - juntos.
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Affonso Romano de Sant'anna
Poesia Reunida  - volume 2 (1965 - 1999)


"Sigo sem pressa. A morte
exige trabalho, trabalho lento
como quem nasce".