quarta-feira, 27 de novembro de 2024

Jussara Salazar

TEMPUS FUGIT

Dentro de um sonho que passou
dentro da gaveta de guardar
dentro de uma sala está o amor
dentro de um mar
dentro de um livro guarda aquela flor
dentro de um banjo guarda teu cantar
e num tropel de anjos
escuta
o vento vai soprar
enquanto os sinos dobram
enquanto dura o tempo
dentro de um mar habitar
dentro de um céu que já passou
dentro do horizonte
dentro de uma dor
dentro de uma fonte
que sempre secou
dentro de um véu
dentro de uma ponte
dentro de um fruto
que nunca viçou
dentro de um nunca
se um rio
mora dentro
da aurora de um momento
de um corpo
por um átimo
de um dentro tempo
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Jussara Salazar 
O dia em que fui Santa Joana dos Matadouros

quarta-feira, 20 de novembro de 2024

Cristiane Sobral

 EM LUTO, EM LUTA!

Não tenho tempo de esmorecer no campo de batalha

Nos dias de luto seguirei lutando
Cantarei um canto doído, profundo
Levando ao meu útero o húmus dos meus ancestrais
Com a certeza daqueles que um dia voltarão
rasgando o ventre desta grande mãe

Nos dias pardacentos onde tudo enguiça
A humanidade afunda como areia movediça
Mais que um minuto de silêncio
Um minuto de desordem
É preciso subverter a ordem
Um minuto a exterminar nosso suplício
É preciso que os machos acordem
Sejam punidos
Sejam sarados
Voltem a contribuir para a perpetuação da espécie

Não tenho tempo de esmorecer 
Nada de fracasso ou coisa que o valha
Nos dias de luto
Eu luto
Ubuntu
Esse é o meu culto.
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Cristiane Sobral
Terra Negra

quarta-feira, 13 de novembro de 2024

Francisca Camelo

SANGUE, SOLIDÃO, PASOLINI

reparo que há sangue no chão
da estação de metro
quando pelo telefone
me lês em italiano
o poema da súplica
à mãe de pasolini

mesmo com sangue
no chão
na boca
nas mãos
entrego-me aos restos
do que possa sobrar.

fica perto, se puderes
dez minutos / dez anos
(o possível, apenas)
e ainda que tudo isto
venha a ser irreparável,

repete comigo
(algumas maldições
parecem-se tanto
com orações):

o amor é danado
a solidão também.
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Francisca Camelo
O quarto rosa

quarta-feira, 6 de novembro de 2024

Betine Daniel

 (NO PRECIPÍCIO ERA O VERBO)

No fundo de tudo,
essa vontade de morrer nas coisas;
essa urgência de afogada;
viver nelas:

palavras, pessoas, coisas

Melhor ouvir
o que a boca não consegue dizer
melhor, abismada,
viver em voz alta;

- cantar, à boca,
o silêncio de um uivo.

Longos os espaços
entre os acontecimentos,
a batalha alpinista
do entendimento.

Dizer:

- os braços
nos ensinam
a morrer

contando 
as feridas.
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Betine Daniel 
ainda ancora o infinito