quarta-feira, 30 de outubro de 2024

Bruna Mitrano

 a setenta quilômetros do mar

moro a setenta quilômetros do mar
moro a duas horas e meia do mar
moro a dois ônibus ou
vinte e quatro estações de trem e
onze estações de metrô
do mar

moro a tanta preguiça de ir
até o mar

mas todo dia piso
nos dois montes de areia
da calçada do vizinho
e lembro

que só esquece o mar
quem mora perto do mar

eu não esqueço
que moro onde não escolhi
que moro onde posso morar e
às vezes é madrugada e faz silêncio

às vezes é madrugada e durmo
ouvindo o barulho da água
do valão diante a minha casa

 e acordo com a boca salgada

           nos olhos dois montes de areia.
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Bruna Mitrano
Ninguém quis ver

quarta-feira, 23 de outubro de 2024

Francisco Alvim

 POEMA

(A Carlos Drummond de Andrade)

Há muitas sombras no mundo
Elas ventam nas nuvens
e no ar
brilham solitárias como topázios - 
gotas de luz apagadas

Os astros ventam
A sombra é o vento dos astros

No fundo das águas prisioneiras
de lagos e açudes
há um vento de águas -
sombras

No mar
refratam-se submersas
viageiras
em meio a florestas de alga - 
sombra das sombras emersas

São feitas - as sombras - de ar
escuro
Lembram o tudo e o nada

O voo das sombras
gira em tono de uma coluna
sonora, o poema - 
luz de dentro

Fora
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Francisco Alvim
Elefante

quarta-feira, 16 de outubro de 2024

São João da Cruz

 NOITE ESCURA

(Canções da alma que rejubila
por ter chegado ao alto estado da perfeição,
que é a união com Deus,
pelo caminho da negação espiritual)

Em uma noite escura,
com ânsias, em amores inflamada,
oh ditosa ventura!,
saí sem ser notada,
estando minha casa sossegada. 

Às escuras, segura,
pela secreta escada, disfarçada,
oh ditosa ventura!,
às escuras e emboscada,
estando minha casa sossegada.

Nessa noite ditosa,
secretamente, que ninguém me via,
de nada curiosa,
sem outra luz nem guia
senão a que no coração me ardia.

Só esta me guiava
mais segura que a luz do meio-dia,
aonde me esperava
quem eu já bem sabia,
em parte onde ninguém aparecia. 

Oh noite, que guiaste! 
Oh noite, amável mais que a alvorada!
Oh noite que juntaste
Amado com amada,
amada em seu Amado transformada!

Em meu peito florido,
que inteiro só para ele se guardava,
ficou adormecido,
e eu o afagava,
e o leque de cedros brisa dava.

A viração amena,
enquanto eu seus cabelos espargia,
com sua mão serena
o meu colo feria,
e meus sentidos todos suspendia.

Fiquei e olvidei-me,
o rosto reclinei sobre o Amado;
cessou tudo, e deixei-me,
deixando o meu cuidado
por entre as açucenas olvidado. 
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São João da Cruz
Poesias completas

quarta-feira, 9 de outubro de 2024

Artur da Távola

PERGUNTAS

Só sou o que já sei?
Sou mais ou sei aquém?
Posso saber além da fatalidade do eu?
Por mais que saiba ser
esbarro apenas em mim:
ser é saber-me?
Ou saber-se sendo?
Preciso ser além do que sei
para saber além do que sou?
Mas ser é saber-se
ou cumprir o determinismo
do si-mesmo?
Se sou, perco a liberdade;
se não sou, escravizo-me a ser.
Ser será libertar-se de ser?
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Artur da Távola
O jugo das palavras

quarta-feira, 2 de outubro de 2024

Jarid Arraes

 VOCAÇÃO

um corpo que carrega
um útero
é submetido ao decreto
da incondicionalidade
é submetido ao destino
de um útero

os grandes sacerdotes
e os pequenos
as figuras de autoridade
como as telas
como os corredores brancos
todos ensinam
o percurso do útero

que haja vida
porque um útero crescido
- às vezes nem tanto
deve fazer brotas vida
pernas braços olhos
espírito

um corpo que carrega
um útero
precisa de um espírito
que o preencha
o espírito forçado entre as pernas
enfiado enfiado enfiado
obrigatório

um útero é um sarcógrafo
de uma mulher
é a máquina
inquebrantável
de uma mulher

uma mulher é um útero
que carrega algo
há dias em que gente
há dias em que chumbo
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Jarid Arraes
Um buraco com meu nome