quarta-feira, 1 de fevereiro de 2023

Bárbara Mançanares

minha bisavó cobria os espelhos com lençol
amaldiçoava meu banho quente e a curiosidade em explorar janelas
com o destino de um rosto imóvel.

minha avó não pede para eu cobrir os espelhos
mas aconselha me afastar das janelas
desvirar os chinelos em amor à minha mãe
trancar as portas da casa e conferir,
uma a uma, antes de dormir.

minha mãe não possui espelhos
fala do sereno como quem oferece água
deixa os sapatos alinhados feito o deus que organiza os caminhos.
me fala com urgência sobre usar chinelos de borracha
para que os pés não enraízem
enquanto a casa cheira a capim santo queimado
e a parede não reflete a sombra do lampião.

eu evito os espelhos
brigo com o vento após o banho quente
carrego a obsessão por deixar as portas bem trancadas
e os sapatos dispostos em fileiras do lado de fora da casa
mas, quando chove, abro as janelas como quem grita
deixo que no chão se formem poças
se formem rios
bacias inteiras
deixo que os peixes naveguem
e lancem cócegas aos meus tornozelos cansados.
com os pés bem descalços
aninho em meus dedos os raios
e juntos rasgamos os mapas até atingir
o centro da terra.
______
Bárbara Mançanares
Cartografias do corpo que canta



Nenhum comentário:

Postar um comentário