quarta-feira, 25 de dezembro de 2024

Ondjaki

DESNOÇÕES E ALGIBEIRAS

para ser grilo
há que ter algibeiras
onde também caibam silêncios.
ser sorrateiro
espreitando entre dois fios de relva.
saber fazer uma teia invisível
onde o infinito se armadilhe.
encarar o universo com
demasiada intimidade,
a modos que quintal.
[saber que:]
as estrelas encarecem
de carinho
e brilham para mais desanonimato.
sonetar com roncos de garganta
mas desminar rebentamentos no coração.
para ser grilo
há que ter desnoções:
[viver que:]
há só uma distanciaçãozinha
entre apalmilhar um quintal
e acomodar estrelas num abraço.
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- Ondjaki 
Materiais para confecção de um espanador de tristezas

quarta-feira, 18 de dezembro de 2024

Murilo Mendes

 SÃO JOÃO DA CRUZ

Viver organizando o diamante
(Intuindo sua face) e o escondendo.
Tratá-lo com ternura castigada.
Nem mesmo no deserto suspendê-lo.

Mas
Viver consumido da sua graça.
Obedecer a esse fogo frio
Que se resolve em ponto rarefeito.
Viver: do seu silêncio se aprendendo.
Não temer sua perda em noite obscura.

*

E, do próprio diamante já esquecido,
Morrer, do seu esqueleto esvaziado:
Para vir a ser tudo, é preciso ser nada. 
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Murilo Mendes
Tempo Espanhol

quarta-feira, 11 de dezembro de 2024

Jorge de Lima

 MINHA SOMBRA

De manhã a minha sombra
com meu papagaio e o meu macaco
começam a me arremedar.
E quando eu saio
a minha sombra vai comigo
fazendo o que eu faço
seguindo os meus passos.

Depois é meio-dia.
E a minha sombra fica do tamaninho
de quando eu era menino.
Depois é tardinha.
E a minha sombra tão comprida
brinca de pernas de pau.

Minha sombra, eu só queria
ter o humor que você tem,
ter a sua meninice,
ser igualzinho a você.
E de noite quando escrevo,
fazer como você faz,
como eu fazia em criança:
Minha sombra
você põe a sua mão
por baixo da minha mão,
vai cobrindo o rascunho dos meus poemas
sem saber ler e escrever.
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Jorge de Lima
Poemas Negros

quarta-feira, 4 de dezembro de 2024

Ana Luísa Amaral

COMUNICAÇÕES

Entra por essa porta e vem sentar-te
aqui, como daquela vez em que te disse:
os vulcões são pirâmides de luz,
ou campos cheios de sol iluminado.

Terás morrido, sim, e tanto faz
se a sério, se a fingir, os outros o dirão.
Quanto a mim, és fenômeno de gelo
resistente a calor e primavera.

Entra então neste dia, que o sol
resiste ao brilho mais do que neste mês
lhe resistiu, e eu preciso de luz,
não se vê bem agora, é muito tarde,
as luzes nesta sala são baixas e cruéis.

Toma, uma cadeira boa (como a chama
que chega sinuosa): as formas são castanhas,
em perfeita esquadria, e as costas mais direitas
que um iceberg azul na vertical.

Talvez te diga: pirâmides de luz
estes vulcões. Ou não.
Se eu não estiver, ou não estiveres em casa,
deixo um bilhete à porta, junto ao Hades,
na esperança de que o cão
o não destrua - 
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Ana Luísa Amaral
Vozes