quarta-feira, 31 de julho de 2024

Nikki Giovanni

 UM POEMA

às vezes a coisa mais fácil a fazer
é esquecer de contar
às pessoas muito importantes
para você
que elas são muito importantes

eu sou culpada

ligo quando preciso de amparo
ligo quando preciso de conselho
ligo quando preciso entender alguma coisa

aí esqueço de dizer
muito obrigada

chocolate não é o bastante
e eu nem sonharia com joias

mas um agradecimento
pode pelo menos mostrar
que minha mãe criou
uma filha decente

este nem é um bom poema
mas é uma amiga tentando dizer
eu quero
ser uma boa
amiga
já que estamos 
nessas montanhas sozinhas
escrevendo o que podemos

e desejando umas às outras
sempre o melhor
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Nikki Giovanni
um bom choro

quarta-feira, 24 de julho de 2024

Manoel de Barros

 DE PASSARINHOS

Para compor um tratado sobre passarinhos
É preciso por primeiro que haja um rio com árvores
e palmeiras nas margens.
E dentro dos quintais das casas que haja pelo menos
goiabeiras.
E que haja por perto brejos e iguarias de brejos.
É preciso que haja insetos para os passarinhos.
Insetos de pau sobretudo que são os mais palatáveis.
A presença de libélulas seria uma boa.
O azul é muito importante na vida dos passarinhos
Porque os passarinhos precisam antes de belos ser
eternos.
Eternos que nem uma fuga de Bach.
_________________
Manoel de Barros
Tratado geral das grandezas do ínfimo



quarta-feira, 17 de julho de 2024

Ana Cristina Cesar

 ULYSSES

E ele e os outros me veem.
Quem escolheu este rosto para mim?

Empate outra vez. Ele teme o pontiagudo
estilete da minha arte tanto quanto
eu temo o dele.

Segredos cansados de sua tirania
tiranos que desejam ser destronados

Segredos, silenciosos, de pedra,
sentados nos palácios escuros
de nossos dois corações:
segredos cansados de sua tirania:
tiranos que desejam ser destronados.

o mesmo quarto e a mesma hora

toca um tango
uma formiga na pele
da barriga,
rápida e ruiva,

Uma sentinela: ilha de terrível sede.
Conchas humanas.
Estas areias pesadas são linguagem.

Qual a palavra que
todos os homens sabem?
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Ana Cristina Cesar
poética

quarta-feira, 10 de julho de 2024

Fernando Pessoa

ANIVERSÁRIO

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu era feliz e ninguém estava morto.
Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos,
E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer.

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma,
De ser inteligente para entre a família,
E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim.
Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças.
Quando vim a olhar para a vida, perdera o sentido da vida.

Sim, o que fui de suposto a mim mesmo,
O que fui de coração e parentesco,
O que fui de serões de meia-província,
O que fui de amarem-me e eu ser menino.
O que fui — ai, meu Deus!, o que só hoje sei que fui...
A que distância!...
(Nem o acho...)
O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!

O que eu sou hoje é como a humidade no corredor do fim da casa,
Pondo grelado nas paredes...
O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhas lágrimas),
O que eu sou hoje é terem vendido a casa.
É terem morrido todos,
É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo frio...

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...
Que meu amor, como uma pessoa, esse tempo!
Desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez,
Por uma viagem metafísica e carnal,
Com uma dualidade de eu para mim...
Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos dentes!

Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o que há aqui...
A mesa posta com mais lugares, com melhores desenhos na loiça, com mais copos,
O aparador com muitas coisas — doces, frutas, o resto na sombra debaixo do alçado —,
As tias velhas, os primos diferentes, e tudo era por minha causa,
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...

Pára, meu coração!
Não penses! Deixa o pensar na cabeça!
Ó meu Deus, meu Deus, meu Deus!
Hoje já não faço anos.
Duro.
Somam-se-me dias.
Serei velho quando o for.
Mais nada.
Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira!...

O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!...
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Fernando Pessoa
Obra completa de Álvaro de Campos

quarta-feira, 3 de julho de 2024

Mariana Ianelli

JULHO

Aqui os trabalhos não têm fim,
há sempre novas formas de juntar
cacos de coisas ocorridas no caminho,
há um deserto de senhas, sinais, indícios
mas hoje, hoje a lua é um acontecimento,
há um perfume de casa nos teus cabelos,
há uma flor de maio que rebenta em julho
e um cacho de uvas vermelhas lavadas
brilhando num prato que é pura concupiscência.
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Mariana Ianelli
Tempo de voltar