quarta-feira, 26 de junho de 2024

Sophia de Mello Breyner Andresen

A PAZ SEM VENCEDOR E SEM VENCIDOS 


Dai-nos Senhor a paz que vos pedimos
A paz sem vencedor e sem vencidos
Que o tempo que nos deste seja um novo
Recomeço de esperança e de justiça
Dai-nos Senhor a paz que vos pedimos

A paz sem vencedor e sem vencidos

Erguei o nosso ser à transparência
Para podermos ler melhor a vida
Para entendermos vosso mandamento
Para que venha a nós o vosso reino
Dai-nos Senhor a paz que vos pedimos

A paz sem vencedor e sem vencidos

Fazei Senhor que a paz seja de todos
Dai-nos a paz que nasce da verdade
Dai-nos a paz que nasce da justiça
Dai-nos a paz chamada liberdade
Dai-nos Senhor a paz que vos pedimos

A paz sem vencedor e sem vencidos
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Sophia de Mello Breyner Andresen
Coral e outros poemas

quarta-feira, 19 de junho de 2024

Angélica Freitas

voltar para casa depois de horas na rua, em busca
de uma experiência esplêndida
inchando com ar o tórax, voraz com o ar no tórax,
vivendo o momento
com as solas bem sujas no solo, com as solas bem
pegadas ao pavimento
aleluia, porque eles querem minha cabeça baixa,
me querem
comprando num shopping
procurando as últimas revistas

quem poderia caminhar assim na rua tão solta
com a cabeça cheia de zorrilhos

sentir a chuva no encalço
os pulmões cheios
querendo somente uma experiência esplêndida,
voltar com ela pra casa
escrever um poema

escrever
escrever

escrever o quê, com a cabeça cheia de cenouras
de ceroulas de senhoras de cebolas de centímetros
de drummond

*

virar a chave na porta, deixar em cima da mesa
como três patos mortos a ideia do poema
repetir quantas vezes necessário
voltar pra rua até que aprenda
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Angélica Freitas
Canções de atormentar


quarta-feira, 12 de junho de 2024

Carlos Drummond de Andrade

 AMAR

Que pode uma criatura senão,
entre criaturas, amar?
amar e esquecer, 
amar e malamar,
amar, desamar, amar?
sempre, e até de olhos vidrados, amar?

Que pode, pergunto, o ser amoroso,
sozinho, em rotação universal, senão
rodar também, e amar?
amar o que o mar traz à praia,
o que ele sepulta, e o que, na brisa marinha,
é sal, ou precisão de amor, ou simples ânsia?

Amar solenemente as palmas do deserto,
o que é entrega ou adoração expectante,
e amar o inóspito, o áspero,
um vaso sem flor, um chão de ferro,
e o peito inerte, e a rua vista em sonho,
e uma ave de rapina.

Este o nosso destino: amor sem conta,
distribuído pelas coisas pérfidas ou nulas,
doação ilimitada a uma completa ingratidão,
e na concha vazia do amor à procura medrosa,
paciente, de mais e mais amor.

Amar a nossa falta mesma de amor, e na secura nossa, 
amar a água implícita, e o beijo tácito, e a sede infinita.
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Carlos Drummond de Andrade
Claro Enigma

quarta-feira, 5 de junho de 2024

José Antonio Gonçalves

 POEMA DA FLUTUAÇÃO

eu consigo ser
                
                as frutas falsas na bandeja
                os ovos pintados num país distante
                a estante com volumes vencidos pelo pó
                os violinos que desfilam música por telhados e jardins
                os raios de Júpiter descobertos em cadernos infantis
                as anotações dos poetas em livros clandestinos

                os galhos enegrecidos
                vistos da estrada que vai ao mar
                sobreviventes do incêndio provocado por duendes

                o anjo sorridente
                fixo na parede de conchas
                mas vivo ainda
                nesta manhã em que a beleza vence
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José Antonio Gonçalves
ecologias